O Espectador Emancipado – Jacques Rancière
“Hoje temos teatro sem palavras e dança falada; temos instalações e performances como obras plásticas; projecções de vídeo transformadas em ciclos de frescos; fotografias tratadas como quadros vivos ou como pintura histórica; temos escultura metamorfoseada em show multimédia, e muitas outras combinações” [Jacques Rancière (trad. José Miranda Justo); 2010; pág. 33]
Chegámos a este “hoje temos” por meio de uma grande bola de neve que, pelo seu caminho, encontrou autores, artistas, espectadores, filósofos, mestres e ignorantes com um saber próprio. Na verdade, um saber capaz de arrastar tamanha ignorância até um outro patamar. “Emancipado Intelectualmente”. No fundo, um lugar onde se é capaz de apurar o saber por conta própria.
Com o teatro dramático e a sua necessidade constante de aproximação dos personagens com o espectador através de um envolvimento emocional, o trabalho de “pensar”, “conhecer” e “agir”, dizia apenas respeito a quem se encontrava em cima do palco, aos actores. Assim, os personagens pensavam e actuavam em lugar do espectador, sem que para isso fosse necessária qualquer intervenção do mesmo. Gerou-se então, um público passivo. Na verdade, haveria algum interesse em actuar para um público displicente? Artaud e Brecht convenceram-se do contrário e partiram desta ideia para a reformação do teatro: trazer de volta a essência do mesmo com a certeza de que o teatro existe porque é composto por artistas, uma obra e um público. É um lugar onde todos se afirmam e, por esse motivo, não faz sentido dizer-se que existe sem a combinação dos três. Estes, trouxeram à cena duas novidades: as palavras “distanciação” e “aproximação”. Brecht convidava o público a distanciar-se da obra para que nele se gerasse um espírito crítico e uma visão analítica da mesma e Artaud desafiava o público a interagir com os actores abdicando da sua posição de observador. Levantámo-nos das cadeiras. Mais um passo na construção de um público activo. Com isto, percebemos que observávamos sim, mas não conscientes de que essa era a essência do teatro. O teatro existe para ser visto por aquele que sustenta esta relação, na procura do querer conhecer e agir e não por aquele que se deixa existir enquanto apreciador. São olhares diferentes, a busca e a contemplação são olhares diferentes. Artaud e Brecht ofereceram-nos as ferramentas, mas a partir daqui, somos nós espectadores quem tem que continuar o caminho. Porque não é objectivo moldar a opinião do público numa só. Aliás, as ferramentas que nos foram dadas são propositadamente insuficientes para criar uma opinião geral. Um público unânime. A nossa emancipação intelectual passa por consciencializarmo-nos de que não importa o que separa no nosso “saber” do dos outros. Importa sim, que saibamos o que separa aquilo que sabemos, daquilo que ainda não transformámos em saber. Hoje, todos somos capazes de fazer as nossas ligações, as nossas interpretações, de adquirir conhecimentos e de formular opiniões. Hoje, todos somos capazes de nos definir com únicos e de partilhar isso com outros tantos iguais a nós. Certo, cada um à sua maneira. Cada um com uma opinião própria. Cada um com uma aventura intelectual singular. Mas também é certo, que hoje, já nos conhecemos enquanto público activo, um público capaz de se afirmar no teatro como uma das três partes que o integram, sem que para isso, nenhuma prevaleça. Hoje, já nos conhecemos enquanto espectador emancipado.
Recensão Crítica do Texto
Introdução